Da imergência intemporal d’O Labirinto da Saudade, de Eduardo Lourenço


“Em princípio, todo o português que sabe ler e escrever se acha apto para tudo, e o que é mais espantoso é que ninguém se espante com isso.”


Terminei há poucos dias a re-re-leitura de uma obra imprescindível na compreensão do que nós somos e do que não somos. Em bom rigor, O Labirinto da Saudade é percebido como um discurso identitário. Na verdade, em todos os nove textos ensaísticos se vislumbra esse contexto de problematização das questões da identidade. O primeiro dos ensaios, e diga-se que um dos mais interessantes, entitula-se "Psicanálise Mítica do Destino Português", tendo sido dado à estampa na Revista Raiz & Utopia, no mesmo ano de publicação da obra, em 1978. Foi, de resto, o título desse ensaio pensado pelo autor para a obra, todavia Eduardo Lourenço, à semelhança do mexicano Octávio Paz - autor de O Labirinto da Solidão -, decidiu-se por O Labirinto da Saudade, um labirinto, portanto, mais português, por assim dizer: a saudade. Tema que, no entanto, não é tratado na obra como, por exemplo, o é em A Arte de Ser Português, de Teixeira de Pascoaes.
Surge a obra em 1978, quatro anos depois da queda do Império, assim como do Estado Novo; momento adequado para a publicar, segundo Lourenço, e com a intenção de:

- apelar à presença portuguesa na própria realidade, como nos diz o autor em “Repensar Portugal”;

- “repensar (…) a totalidade da (…) aventura histórica [portuguesa], não apenas em função das imagens e contra-imagens mais actuantes da (…) herança cultural [portuguesa] (…) sobretudo de origem estético-literária”;

- questionar “as várias versões dos discursos sobre Portugal”, entre as quais a, na altura ainda recente, “descolonização exemplar”, ou a produzida pelo salazarismo, “uma ideologia em torno da portugalidade e da expansão ultramarina, da família e da religião católica”.


Diz Eduardo Lourenço numa entrevista: “É de crer que por deficiente tradução dos meus pontos de vista, O Labirinto da Saudade se transformou num texto-boomerang como algumas das reacções à obra, na altura em que saiu, o mostraram. O questionamento da identidade portuguesa não fazia parte do meu propósito”. Portanto um certo modelo de tensão essencial entre a visão consciente entre a raiz dos traços da portugalidade e a sua assunção de messiânico destino ou de hiperidentidade. “Quando muito, as versões dos vários discursos sobre Portugal que tinham, em comum, não só serem de carácter ontológico como transcendente ou, pelo menos, destinado a reforçar uma leitura transcendente do destino português”, conclui.
A leitura, portanto, de O Labirinto da Saudade como um discurso identitário é então vista pelo autor como contrária à sua intenção, que era, quer na ordem hermenêutica, quer na ordem ideológica e política, a de problematizar e, se possível, substituir os mais conhecidos discursos identitários que têm Portugal como objecto, por um outro que os explicasse sem ter a pretensão, por sua vez, de ser ‘a verdade’ sobre o que nós somos ou não somos. Sobre o porquê da leitura da obra como discurso identitário não nos cabe discutir aqui.
Cumpre apenas dizer que O Labirinto da Saudade é daquelas obras de leitura impreterível para qualquer português. Alexandre Herculano e Almeida Garrett, escritores representativos do Romantismo em Portugal; Eça de Queirós, Antero de Quental, Teófilo Braga e Oliveira Martins, todos eles setentistas e assinantes do programa das conferências democráticas do Casino; Fernando Pessoa e a moderna geração de Orpheu, “os novos” que desejaram “ser não apenas invenção e recriação de uma nova sensibilidade e visão da realidade (…),mas igualmente uma metamorfose total da imagem, ser e destino de Portugal” : todos estes escritores, nomes sonantes do panorama literário e cultural em Portugal, são referência em O Labirinto da Saudade, por pretenderem, em certa medida e no contexto da época, transformar e lutar contra imagens (reais) de um país (sonhado), uns desejando recriá-lo à imagem de nações europeias fortes, outros anunciando o renascimento do Império com a vinda de um Desejado. Os discursos identitários por eles criados constituem o nosso património cultural, formaram aquilo que chamamos o Ser Português.
Terminamos, reiterando o apelo à leitura desta obra,deste retrato, enfim deste “discurso crítico sobre as imagens que de nós mesmos temos [tínhamos] forjado” como disse o autor. Um livro de emergência, mas de uma emergência intemporal.


Nota: Sobre o autor recomendamos a leitura da sua biografia,no primeiro link abaixo, e do que sobre ele diz José Saramago, no segundo link:

http://www.wook.pt/authors/detail/id/13931

http://caderno.josesaramago.org/2008/10/13/eduardo-lourenco/


André M. Feijó
FDUL

A Revolução

«Bisogna cambiare tutto per non cambiare niente»
Giuseppe Tomasi di Lampedusa, Il Gattopardo

No Abecedário de Gilles Deleuze com Claire Parnet, a reflexão por este operada em torno da "Esquerda" passa justamente pelo problema da revolução. Deleuze afirma o falhanço das revoluções históricas, contrapondo o devir-revolução. Tragicamente a História está povoada de simulacros revolucionários, mesmo aqueles que nos parecem tão reais, tais como a Revolução Francesa, são actos falhados. Falta-lhes sobretudo potência. O eterno retorno clássico, é justamente o resultado de qualquer revolução histórica. Tomemos a citação de Lampedusa, de modo a ilustrar tudo aquilo que já aqui foi dito em torno deste problema. O devir-revolução é uma força de total viragem, uma dobra para fora, destinada a quebrar as linhas de saber e de poder instalados. O devir-revolução é resultado de uma repetição que se dá em diferença e não o caminho paraa morte, ou seja, a sua repetição por semelhança. Estamos destinados ao trágico endgame, nas palavras de Beckett, se a revolução for fruto apenas de uma aparente viragem. O que falta nesta operação? Um povo, sobretudo um povo por vir e nada melhor que a prosa americana do inicio do séc. XX para ilustrar todos os seus desastres. Entre diversos escritores, Melville é talvez o espelho dessa América que nunca foi, mas que cresce e galga nas suas fábulas do sonho americano. O povo português, desde Camões, também vítima de algo que nunca se concretizou. Foram muitos aqueles que sonharam, mas ninguém melhor que Pessoa, soube captar esse desejo de Império. Uma identidade colectiva, não apenas como português, mas como mundo e para além do mundo, o cosmos. Na "Mensagem" encontramos o seguinte verso, "Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor. / Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu.". O povo português, tal como o americano, nunca conheceu a sua verdadeira identidade, apesar dos motivos serem distintos. Se por um lado, o colonizador foi um tirano feroz face aos índios, os verdadeiros americanos (crítica fortíssima a de Miller em "O Pesadelo do Ar Condicionado"), o português sempre quis ser tiranizado por alguém, começando justamente na imagem de D. Sebastião, salvador da pátria, o Cristo Redentor. Imagem perigosa que povoa uma mentalidade doente portuguesa, que encontrou no salazarismo uma expiação dos seus pecados inacabados. A revolução nunca então existiu, sobretudo agora onde a apatia é geral (traços que reflectem o fracasso dos cravos ainda frescos nas espingardas e nas promessas por um país democrático, onde apenas o que reina continua a ser o terror, de forma infiltrada e mais turva sob o signo de um ditador já sem rosto), mas porque a resposta não deve apenas ser portuguesa, mas europeia, mundial. Num mundo onde o Capitalismo encontra-se, tal como Marx designou, na fase virtual, a resposta deve ser mundial. Nesse sentido, o que falta a cada revolução é o outro e não o artificial construído eu. O que cada Estado representa, são apenas construções fictícias do pecado particular de cada Homem se afirmar na sua individualidade e não no seu desdobramento, que passa pelos povos de África ou da Índia. O que anteriormente citei da Mensagem, é justamente a "dor" de cada Homem despojar da sua propriedade e correr livre para o mar, tal como a água em terra de ninguém. Que partamos para o Tejo, pois lá encontramos verdadeiramente o que há de mais português. Que não sejam as continuas margens a violentarem a nossa acção (tal como invoca Godard em Numero Deux), quando a verdadeira revolução, passa por um devir universal, que na mesma forma, Marx pensou o seu proletariado.

Bernardo Vaz de Castro 
FCSH - Universidade Nova de Lisboa

Larry Burrows, Time Life


A Cultura e o Homem II


O que é o homem?

"ser homem é tender para um incessante ultrapassar" - Karl Jaspers

Disse no texto anterior que a Cultura e o Homem são dois termos que não podem dissociar-se. Para Franscisco Romero, " La cultura (...) es el conjunto de los productos, actos y procesos especificamente humanos." No que respeita ao Homem, para o mesmo autor este "es padre de sus obras, pero tambien en proporcion notable, hijo dellas." Ainda, segundo ele, " la creácion personal es de rigor en muchos dominios de la cultura, pero rara vez deja de intervenir la présion o el influjo colectivo(...), como si el autor no fuere sino el intérprete de una intuicion o un sentimiento social".
Aqui surge naturalmente a decantada questão das relações entre o homem e o meio. E aqui deparamos também com um influxo mútuo. Uma forte individualidade pode ditar uma revolução no meio e as revoluções, sejam de que natureza forem, são normalmente expressões generalizadas de inspirações individuais, que se combinam com outros factores integrados num conjunto de processos históricos evolutivos. Uma forte individualidade pode ditar uma revolução no meio, portanto.
Encarando o Homem em relação à Cultura, poderíamos afirmar que uma problemática individual é humana em dois sentidos: em primeiro lugar, na medida em se não disseca nem formaliza num plano meramente abstracto; por outro lado, é também humana, porque se constitui em cristalização de um sentimento ou impulso de um grupo. Não devemos esquecer que a expressão mais subjectiva de uma posição ou de uma atitude humana é gerada por um conjunto de determinantes que constituem um clima colectivo, muito embora uma boa parte das vezes estas se não encontrem perfeitamente visíveis ou explicitadas. Outras posições haverá que, na formação da mentalidade comum a uma época, a um período ou a uma localidade, se volvem quase à altura de preconceitos.
Ocorreria, a propósito, perguntar que espécie de limitações à expressão humana da Cultura teria imposto, por exemplo, um conceito de poesia barroca. Não foi esta, por seu turno, o produto de um clima espiritual específico de uma época ou de um momento? É de notar que o Clássico teve manifestações díspares, quer em relação aos géneros, se compararmos a virilidade e a contenção de certos prosadores com o vazio da floração cultista ou conceptista da poesia desse tempo. A própria atitude do homem seiscentista, nessa alienação da realidade, não será uma expressão ou mesmo um produto da realidade momentânea em que se forjou a sua armadura psíquica? E, todavia, afirma-se que houve uma desumanização. Porquê? Talvez porque lhe faltou uma vivência. Há ou parece haver uma desvinculação do homem, em relação às suas origens.
Retomando o que se disse, a a propósito da vinculação do homem ao meio, a efectividade desta só poderá entender-se no seu valor histórico e esse será naturalmente conferido pela posteridade. Certo é que os expoentes mais elevados da Cultura são representados pelas formas mais individualizadas da assimilação ao meio.
Mas o que é o Homem? É a interrogação que repetimos e é formulada por tantos pensadores, implícita e explicitamente. Para Ortega y Gasset, o homem não tem ser porque se caracteriza por um simples devir. O que parece significar que, se está em perpétua evolução, defini-lo corresponde a juntar abstractamente vários momentos, de modo que elaborar um plano de síntese sobre o mesmo homem na busca da desejada unidade, corresponderia a observar do alto esta trajectória do homem através da História. Síntese essa que estaria em contraposição com as doutrinas existencialistas como, por exemplo, as de Sartre ou de Camus, que opõem à abstracção o homem concreto,livre, independente de determinantes metafísicas, tomado como medida e limite de si próprio, sofrendo ao mesmo tempo o drama, a angústia, o desespero, ou a náusea, no sentido sartriano, estados estes que se filiam no sentimento do absurdo em que se resume a sua existência. O cartesiano penso, logo existo é negado por Kierkegaard, quando este afirma paradoxalmente: Eu penso, portanto não existo. Para este último nada mais há do que existir, de modo que a verdade é a própria existência. Na posição de Descartes, a existência surge como consequência lógica do pensamento; na do filósofo dinamarquês, constitui uma razão de ser em si. O aparente paradoxo de Kieregaard parece-me que poderia sofrer a seguinte explicação: o não existir é uma consequência natural do eu penso, na medida em que este anula o existir, aceitando, como atrás se disse, que a existência é inefável e, por conseguinte, refractária às surtidas da razão abstracta. Mas é o existir que tem realidade por si próprio, anulando, consequentemente, a verdade do cogito. Kierkegaard seria talvez menos paradoxal, se afirmasse: eu não penso porque não existo.
Posto isto, poderíamos perguntar se toda a problemática humana não se resumirá, afinal, em tomar o próprio Homem como origem e fulcro de todas as preocupações. A celebérrima frase de terêncio - homo sum, humani nihil a me alienum puto - é de flagrante actualidade, na medida em que não é possível conceber o Homem preocupado com os problemas de uma comunidade que não seja ele próprio. De modo que a citada frase do comediógrafo/pensador romano ficará como denominador comum desde a interrogação metafísica a respeito de si mesmo, até à atitude de humanitarismo ou de solidariedade em face do sofrimento dos seus semelhantes.
Em jeito de conclusão, dir-se-ia que até nas suas expressões pessimistas se exalta a importância do Homem. De todo o modo, o que lhe custa mais a suportar é a indiferença em relação a si próprio. Só esta constituiria um valor especificamente negativo. Diríamos, porém, que essa preocupação antropocêntrica, se encontra esbatida na sua arrogância ou pretensão através da cadeia de reacções emocionais, que verdadeiramente a humanizam na angústia, na interrogação metafísica, na dor cósmica, no sofrimento e nas suas atitudes mais extremas da náusea ou do desespero, que se volvem em estigmas da expiação com que ele paga a ousadia de se colocar no centro do mesmo universo, tudo isto a reduzi-lo paradoxalmente à escala da sua ínfima importância perante o todo que ele procura abarcar. De qualquer modo, ou atendo-se aos seus problemas vitais ou assumindo outras preocupações, quer estas revistam as roupagens da mitologia, quer se ergam às proporções de interrogações metafísicas, quer humilhando-se, quer exaltando-se ou hipertrofiando-se na sua importância, é o Homem que continua a salientar-se como ponto de irradiação. E o que possa representar uma anulação do fluir desse complexo emocional trazido pela dor ou pela angústia, como seja o sublimar-se noutros estados superiores, significa ainda uma ascensão dele próprio em relação a si mesmo.

André M. Feijó,
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Passear pela Guerra Justa de S. Paulo a Puffendorf


Aqui vai... Resumir, muito sucintamente e sem preocupação de interligação directa, o pensamento jurídico associado à legitimidade do poder, às teorias da guerra justa e da desobediência civil.
Esta teorização, parte do pensamento cristão com o seu universalismo e ponderação metódica sobre as condições de convivência, que desde S. Paulo vinha reflectindo uma teoria de unidade do género humano, uma família de nações unidas por vínculos de valores comuns - o antigo testamento dizia-nos  que os povos mesmo que não alcançassem a lei divina revelada tinham sempre hábitos próprios que deviam respeitar.
Santo Agostinho, fundamentando a sociedade internacional sem suprimir a diversidade cultural, dizia que a guerra justa “é aquela que visa restabelecer a justiça violada e que é limitada nos seus efeitos pela moral cristã e pelo direito”.
Na sua esteira, nomes como Santo Isidoro de Sevilha, Graciano, S. Raimundo de Peñaford desenvolvem a teoria da guerra justa - culminando em Aquino a noção da guerra como um tema teleológico-moral.
Formulam-se questões: qual é a autoridade competente para declarar a guerra? Os seus requisitos são perceptíveis aos infiéis? (São Raimundo) Cujo a resposta varia segundo as teoria hierocráticas / antihierocráticas. Nomeadamente, quanto aos infiéis varia porquanto a personalidade jurídica dos infiéis podia ser confirmada pela impossibilidade de discriminação ou não se lhe atribuísse personalidade jurídica.
No séc. XIV as correntes sobre o ius gentium e a humana societas vão ser tratadas no âmbito do conflito entre o Império e o Papado, enquanto teóricos regalistas, voluntaristas e nominalistas vêm impor o primado da vontade individual. O papel de Marsílio de Pádua (Defensor Pacis) que vai dominar as teorias da época, substituindo a escolástica pelo humanismo
Bártolo, um comentador, apresenta a tese estatutária com clara supremacia do império, autónomo do papado. Reconhece às comunidades o poder de declarar a guerra justa.
A Escola Espanhola surge mais tarde num mundo em expansão e mutação acelerada, numa dualidade crispada entre os teóricos da razão de Estado e do humanismo cristão.
No trilho de Maquiavel, a Razão de Estado encara a Guerra como um fenómeno natural – segundo um critério de conveniência e oportunidade para o poder, em detrimento da justiça e da moral. Enquanto o humanismo cristão defende a primazia da moral, seguindo a paz e a ética política (Erasmo, More, Campanella).
A Escola Espanhola é inovadora e essencialmente filosófica, no sulco da primeira escolástica vê no homem um ser racional e social, enquanto o Estado, tal como o homem, necessita de outros Estados e juntos constituem uma sociedade natural.
Bartolomeu de las Casas defende que os humanos nascem por natureza livre, condena violência; (“nunca razões de civilização ou cultura podem permitir que um povo possa conquistar outro, fazendo-o perder a liberdade”); Francisco Vitoria refere que não é legítimo obrigar a obedecer a Deus, pois a fé não se impõe; deve existir um relacionamento entre todos os povos, independentemente da religião (génese do direito internacional), e mesmo o Padre António Vieira: refere que a maldade dos governantes traduz-se em actos violadores do cristianismo no Estado cristão.

Em Francisco de Vitória a sociedade é um fruto de direito natural - direito comum à humanidade (não pode ser concebido sem uma organização social e política) – que é um conjunto de princípios fundamentais de conduta humana que se desenvolve e positiva através do costume, de pacto ou convenção. Mas, o Direito Internacional, que é formado por estas comunidades, não rege apenas as partes, tendo força obrigatória geral – Direito Internacional Comum.
O Estado como comunidade política perfeita não tem superior na ordem internacional, negando as arbitragens, não existindo limites à sua autonomia nem à sua soberania (rejeita o poder político e a autoridade universal do Papa, rejeitando a teoria teocrática, o papa não é dominus orbi). Aparentemente, é difícil conciliar a ideia de um Direito Internacional Comum e a total soberania internacional do Estado, mas a resposta reside na visão do direito das gentes como direito comum ao género humano, sendo um direito positivo ex pacto et condicto dos homens (fundamentado no direito natural) em que substitui o conceito de cristandade por “orbe” – substituindo uma visão teológica por uma racionalista.
A guerra e os meios para a humanizar (ius ad bellum/ius bellum) são invariavelmente tratados sobre as mesma postura: guerra como um mal necessário para reprimir a injustiça entre povos e assegurar a paz totius orbis.
Pergunta-se em De iure belli: é lícito aos cristãos fazerem a guerra? Em quem reside a autoridade para fazer a guerra?  Qual  a razão da guerra justa? O que é permitido na guerra?
Cristo não proíbe a guerra desde que seja justa (Aquino e Agostinho), pois aquele que tem uma causa justa, que usa a força em sua defesa e para reposição da justiça, segundos princípios de direito e para reposição da paz não faz o mal, mas sim o bem.
Só o príncipe pode declarar a guerra: não funcionava como uma prerrogativa do Estado, mas um serviço à comunidade internacional: o recurso à guerra é lícito sempre que  o dano causado fosse inferior ao que se fosse repor.
Francisco Suarez radica a sua perspectiva na distinção dos fundamentos jusnaturalistas dos positivistas do direito internacional: normas de direito natural são absolutas e invariáveis; o direito natural positivo, racional e natural, surge das convenções e costumes, que obrigam por decorrerem do consenso geral.
Nele ressurge a convicção numa solidariedade da humanidade: “o género humano embora dividido em povos e Estados diversos conserva no entanto uma certa unidade, não apenas específica, mas quase política e moral”.
Não é possível o isolamento das comunidades políticas, pois nenhuma é auto-suficiente, necessitam de relações entre elas -  garantindo as maiores utilidades. Têm que ser regidas pelo direito internacional positivo para alcançarem o “bem comum da humanidade”, nas palavras de Verdross.
Neste pensador a teoria da guerra restringe o conceito de bellum justum, na submissão da guerra ao direito das gentes (Domingos de Soto, Vasquez de Menchaga) – a guerra justa é a que visa punir a violação de direitos, assim, é obrigatório fazê-la. Há em Suarez uma perspectiva que afasta a capacidade de avaliar através dele a Restauração como uma Guerra Justa, pois, reflectindo sobre o conceito de conflitos, diz que só pode ser chamada de guerra o que é exterior e entre dois Estados.
Não cumprindo, da mesma forma, o requisito do recurso a um ente superior, nesta época em crise, antes de se declarar a guerra.
Após a Segunda Escolástica surge Grócio, autor que ultrapassa a lex aeterna, e fundamenta na natureza humana o tema da justiça na guerra. Veja-se que no seu tempo os Estados já eram uma realidade efectiva, segundo o princípio da soberania.
A racionalidade do direito torna-o acessível à mente humana sem necessidade de revelação. A validade e obrigatoriedade são subjacentes à razão das normas, independentes da moral e da fé. O Direito Natural será um produto da razão, e decorre da própria natureza humana  e o direito positivo decorre da vontade humana: a natureza e a vontade concorrem para a formação do direito – na comunidade internacional é a figura ius gentium voluntarium que nasce da communis consensus gentium. Personalizando a essência do Direito, é um continuador de Pico della Mirandolla: o ser humano é o vértice da realidade e portanto não deve estar dependente de nada nem de ninguém. Aqui a liberdade conduz à dignidade da pessoa.

De outro modo, Hobbes, contemporâneo da questão em análise, vê na formação da comunidade política um pré-estádio, o Estado de natureza, que é um Estado de guerra e de amargura permanente, em que se constata um paradigma de bellum omnium contra omnes. Por todos os homens serem iguais e daí resultar a desconfiança e o egoísmo, há uma luta pelo bem-estar pessoal e auto-conservação.
A sociedade política é fruto de um pacto social voluntário baseado num calculismo.
O Direito Natural liga-se ao instituto de conservação, não sendo mais que a liberdade de cada um em usar o seu poder para preservar a vida. É uma regra de razão que proíbe que cada um pratique actos que possam ser prejudiciais à sua vida.
A paz e a segurança só são possíveis pela transferência para o Estado de certos direitos: o Estado é uma só pessoa que concentra direitos individuais, uma unidade máxima que conserva uma absoluta soberania. Puffendorf, inspira-se directamente nas questão portuguesa e catalã das revoltas da década de 40 do séc. XVII, e desenvolve na sua De Jure Naturae et Gentium a perspectiva de Hobbes, aceita e desenvolve esta teoria, na qual o Estado de naturezaseria de pacifismo. Com uma sociabilidade fundada na convenção em que se formam três pactos que levam ao Estado: (I) põe fim ao Estado de natureza e cria a sociedade para consagrar a segurança e a paz; (II) pacto que estabelece a forma de governo; (III) pacto que estabelece a submissão ao soberano. 

Igualdade/Liberdade


1)   Introdução
A liberdade e a igualdade não têm interesse para a história das ideias políticas se forem desviados do seu objecto primeiro, o Homem. É necessária uma humanização e uma referência social para que se possa considerar a igualdade a liberdade como “gémeas” indissociáveis. A sua justificação basilar simultânea é a essência humana, caracterizada pela racionalidade, que limitada justifica também limites à liberdade. Só no seio de uma sociedade organizada com um poder estatal dinamizado e controlado pelo Direito é que estas realidades podem ter aspirações de concretização, pois por via autoritária tentam controlar-se as invejas.
Contudo, a inserção da pessoa num estado, podendo garantir as suas liberdades básicas, limita por outro lado uma liberdade magnânima e absoluta, pois vincula a pessoa à prossecução do bem da sociedade exigindo-lhe que dignifique a pessoa humana.
A invídia social, a cobiça pessoal, a inveja de uma massa, de um grupo ou comunidade são os principais ardinas da igualdade, daqui atrás me ter afastado da luta dos oprimidos. Pois, esperando estes verdadeira igualdade material ou simplesmente a repressão de outros permitem a sua ou a alheia recusa de liberdade. O direito tem aqui um papel crucial desde a limitação e a distribuição do poder, segundo um sistema de freios e contrapesos, e na garantia positiva dos direitos de cada um, devendo a meu entender ser proibida a regressão jurídica destas garantias – como o sufrágio universal, as garantias sociais… No entanto, é necessário criar cautelas, equacionar como tratar os intolerantes, ver a maioria como critério de escolha e não verdade, criar um estado que paute pela subsidiariedade, para que não se crie um poder autoritário e repressivo. Para que não se justifiquem o anarquismo que acredita que não existiriam problemas sociais advindos do exercício do poder pelos mais fortes, pois isso seria causado pela cobiça que nasce na sociedade, nem a liberdade colectiva extremista baseado numa ideia de igualdade total que viria da luta de classes, com a perda de igualdade transitória e o fim da liberdade pela submissão.
2)  O que são? – Génesis
I) Igualdade: A noção de igualdade, como principio, nasce da visão judaico-cristã da igualdade à imagem de Deus, diria que com um objectivo de ser e de dever ser. Alargando-se com o constitucionalismo liberal, relembre-se os princípios da revolução francesa – funcionando como um status activae civitatis – que além de positivada foi levanda a objectivo de actuação pelo Estado Social. Temos, portanto, pelo menos uma igualdade pela sujeição universal a um aparelho estatal.
1) Embora as mais marcantes lutas da história com um objectivo social de igualdade nasçam de climas de graves assimetrias e hierarquias, não se pode reduzir a igualdade a uma jornada de lutas de uma sucessão de classes oprimidas, esquecer-se-ia desta forma o pensamento das ideias, da materialização intelectual da consciência ética e jurídica geral e dos processos de interpretação pessoal levada a cabo pelos Doutos.
2) A igualdade não pode ser reduzida a um objectivo de fim construtivo das desigualdades, sejam jurídicas ou sociais. Ficaria por aqui como um mero instrumento, ou melhor, uma teoria de crescimento político, que levaria maxime a uma mera proporcionalidade.  
3) Numa visão unicamente personalista, que tenha como base a imagem do homem, aplicando à sociedade de uma forma realista a noção de igualdade, e, pondo desta forma de parte idealismos, actualmente devemos encarar a liberdade com um principio basilar de um Estado de Direito. Deve ser mutuamente um direito fundamental, ligado à qualidade de se ser pessoa e à sua dignidade, e um direito social, que, também, tendo origem na dignidade da pessoa humana, aparece como uma pretensa realização material dessa igualdade. Ou seja, diferem numa perspectiva geral, e numa perspectiva específica.
II) Liberdade: A liberdade é um ideal, interessa-nos aqui ver a liberdade aplicada a uma ideia humanizada. Quero com isto dizer que considerar a liberdade como uma utopia, um mero princípio religioso, moral ou filosófico, alheio da sociedade e da concretização histórica do homem não interessa à História das Ideias Políticas.
     Ver a Liberdade como uma absoluta e livre autodeterminação, escolha, como um acto voluntario, uma espontaneidade, uma indeterminação, uma ausência de interferência, uma libertação de impedimentos, um ideal de maturidade, uma autonomia intelectual e ética, ou uma razão de moralidade, por si só não chega. Pois, tende-se a fugir de uma perspectiva de alteridade. Isto seria ver no indivíduo um ser perfeito e autónomo, com igual absoluta nas possibilidades e oportunidades, o que não é verdade – o homem é animal social e imperfeito, limitado pela sua própria razão. Razão esta que aliada à força conduziria ao mais elementar dos regimes, a tirania. Só numa concepção estadual se consegue garantir os vários direitos individuais. O Estado só é necessário neste sentido, e deve prover por uma política supletiva, de subsidiariedade.
1)  Poderá a liberdade viver numa perspectiva ideal, independente do homem?
Considero que sim, se, se fechar numa perspectiva filosófica, sem o homem como realidade de estudo; ou longe do sujeito que introduz a ideia teórica – a sua visão. Contudo, só numa visão puramente religiosa ou panteísta, em que o nascimento da inteligência e do complexo da sabedoria viveria sem o homem é que se pode pensar que a ideia de liberdade subsistiria sem actores, activos na vida comum, ou passivos como estudiosos.
2)  Será a liberdade uma realidade que vive em si própria, uma realidade que se auto-alimenta?
a)      A liberdade não é auto-suficiente por ser um termo tão geral que para a sua interpretação e revelação é necessária interferência humana, reafirmando o que foi dito acima. A liberdade é indissociável de uma ideia de racionalidade, só por um processo cogente e intelectual, utilizando a razão se pode materializar a liberdade primária. Funcionando a racionalidade como o seu fundamento mais óbvio e, simultaneamente, o seu limite mais intuitivo.
3)    Liberdade e Razão – Sintetizada na sociedade ou na personalidade
Assim, a liberdade de que falamos vive dentro de uma sociedade, autoritariamente organizada – não interessa se de forma legítima ou não, por um processo mais ou menos democrático ou popular -, mas a verdade é que por maioria de razão a organização estatal segue um qualquer pensamento ideológico, que é produto de uma elite que rompe com o existente, ou tenta sintetizar o pensamento geral. Nasce daqui uma ideia concreta de liberdade: o posicionamento mais ou menos livre dentro de uma sociedade, que permita agir com mais ou menos entraves. O comportamento humano deve agir segundo a concepção da sociedade escolhida pela comunidade, ou num objectivo de melhoria que permite a não subordinação ao direito instituído e legitima a insurreição se for pela luta contra a injustiça. Havendo nesta ideia uma absorção do comportamento do homem pelo bem comum - sendo este o seu limite. A esta não pode ser alheia uma concepção meramente personalista, que veja na racionalidade humana o limite da liberdade e o seu fundamento. Criando uma ideia de liberdade formal quando se processa a uma liberdade absoluta de pensamento, e a uma liberdade material, que encontra como limite a perspectiva social.
A visão de liberdade deve ser uma síntese entre ambas, numa perspectiva subordinada à sociedade continua a falar-se de agir, chamando a si a razão. Nem a dignidade da pessoa humana como fim primeiro e último do Estado. Numa perspectiva personalista não se pode esquecer da concretização do homem na sociedade, sendo esse o seu propósito e a origem da sua nobreza.
4)    Deus?
a)    Independentemente da existência ou não de Deus a legitimação da liberdade recai na dignidade humana, na pessoa como pessoa, seja por esta existir como animal pensante ou existir à imagem e semelhança de Deus. A origem e o limite da liberdade é a dignidade da pessoa humana. Tal como, o elo de união à igualdade é a existência universal da dignidade humana, comum e no mesmo grau a todos os homens. (Refere-se a importância, de mais uma vez, não ver a liberdade como absoluta, nem utópica. É importante pensar-se como aplicada aos homens, seres racionais e diferentes dos animais, e imperfeitos e diferentes de um Deus bom, omnipotente e revelador.)
5)    Liberdade como catártica ou angustiante?
A liberdade vista como inexistência de limites ao pensamento racional pode ter um duplo sentido. Por um lado uma visão libertadora, superior ao mundo normal, comum. Uma elevação do espírito. Por outro lado o poder de pensar pode levar à tristeza por essa capacidade que é, ao fim de contas, limitada pela própria capacidade racional do homem.
6)    Liberdade e Justiça
a)   A liberdade só é lícita quando válida, ao guiar a prossecução quer do pensamento, quer do comportamento por princípios de justiça. O que chama a liberdade ao direito e que faz com que consigne princípios quer de liberdade – como a liberdade individual de escolha, pensamento, credo; a autonomia privada – quer de sujeição.
b)  A liberdade deve ser vista como um princípio de moralidade, que encontra o seu limite de actuação na justiça, no respeito pela dignidade alheia, na solidariedade.
3)  Conclusão – binómio indissociável? Exemplo de comensalismo genético ou de realidades antagónicas?
Uma ideia de liberdade geral, fundada como a liberdade na dignidade humana, funda automaticamente uma ideia geral de liberdade. Tal como o inverso. Fundando uma perspectiva política de vida simultânea.
a)A igualdade perfeita é necessária para existir uma liberdade perfeita: porém, esta não existe naturalmente, por via de interesses egoístas individuais. Só o estado, por imposição, se pode arrogar de um direito instrumental de equipararação social o pode fazer tornando-se um estado despótico – que introduz actualmente a ideia da democracia totalitária, daqui a limitação tanto da liberdade individual como dos poderes políticos como uma necessidade social.
b) O estabelecimento de uma sociedade organizada como forma de garantia das várias liberdades postula uma limitação da liberdade individual, absorvida numa liberdade social.
Daqui, advém a concessão de uma liberdade à diferença, segundo um postulado de tolerância, e ao mesmo tempo uma limitação da liberdade pela necessidade de igualdade.
     c) Idealisticamente o caminho a uma igualdade e uma liberdade perfeita levaria ao fim do estado, com isso aos egoísmos que sem limites imporiam uma tirania dos mais fortes, levando ao controlo da liberdade, efeito de uma estratificação, e, por existência de meios de controlo e repressão, pela formação de uma elite ao fim da igualdade. Concluímos que só num plano formal estas realidades podem viver sozinhas. Hoje há que equacionar a globalização e etnocentrismo – A arca da aliança ou o cavalo de Tróia? Considerando a dignidade humana como um princípio nascido da própria condição humana e que se estende a todas as pessoas, garantindo-lhes um direito potestativo de reclamar a sua liberdade e igualdade a globalização pode trazer consigo ou a universalização destes princípios ou com ela nascer a opressão, uma caixa de Pandora, mascarada de cavalo de Tróia. O tempo nos dirá.

Requiem Necessário à Figura Clássica do Estado - Exercício de Necrologia da Soberania


Requiem Necessário à Figura Clássica do Estado  - Exercício de Necrologia da Soberania

Requiem aeternam dona eis, Domine,
Et lux perpetua luceat eis.


Existe uma relação de causalidade entre o conceito de sociedade e a existência do Direito.
O homem, a entidade que dá à luz ambas as anteriores ideias, é um ser dotado de razão que baseou o seu crescimento no desenvolvimento científico que as suas capacidades potenciavam – chega, por via da ciência, a chamar à sua espécie homo sapiens sapiens.
Por constatação empírica, chegamos à conclusão que todas as gentes, por toda a parte, se organizaram numa estrutura hierarquizada e munida de poder. Sendo que o fenómeno do exercício de poder é dos mais críticos para o impulso e continuação da sociabilidade do “género humano”.
Retiramos duas conclusões: primeiro, os homens não são cândidos, sendo o estado uma entidade indispensável; segundo, diz-nos a economia que os bens são escassos criando conflitos.
Ao encadear estas ideias, somos impelidos a dar como essencial uma ordem normativa que regule as relações entre os homens, que trate da organização da estrutura do estado, da legitimação do poder e da ordem pública. Esta ordem é o Direito! Sendo o único que, pela coercibilidade que pode aplicar, que consegue ter um impacto generalizado no tecido global.
Não se ache que é independente, ou um fruto perfeito do labor de Deus… Ele vive da e para a sociedade, crescendo e materializando-se com ela. E na filosofia, como produto do racionalismo, vai colher as suas opções quando procura soluções verdadeiramente justas e independentes de condicionalismos sociais directamente evidentes. E nem assim é neutro.
A fonte directa pode ser a ética da sociedade, uma determinada ideia de moral, ensinamentos de ordem religiosa ou meramente corporativa, e princípios gerais que a todos se aparentam evidentes e que por isso estão munidos de uma convicção de respeito.
Uma constante na coabitação humana é a tentativa de assegurar os valores da Liberdade e da Igualdade, tão antagónicos… Impossíveis de conciliar absolutamente entre si. Sendo da tentativa da sua conciliação que nascem todas as teorias políticas da história na busca da melhor sociedade.
Numa tradição ocidental, baseada na herança judaico-cristã, somos impelidos a seguir o conceito da dignidade da pessoa humana para alcançar “O Futuro da Humanidade”, nas palavras de Habermas.
A Dignidade de que falamos é uma fonte de valores essenciais e indispensáveis que iluminam a existência humana que funciona, segundo a fórmula Kantiana do imperativo categórico, perante uma conduta ontologicamente finalística.
Chamemos agora o Requiem que aqui tratamos.
Tönnies estudou os conceitos de comunidade e sociedade, sendo que a comunidade em que vivemos vive sob um estigma: a soberania absoluta e decadente, tal como definida por Bodin.
O Estado é uma entidade criada à imagem do homem, tal como o homem havia sido criado à imagem de Deus, iconologicamente um ser com membros e com uma vontade. E que vive no mesmo dilema humano na sua relação com outros Estados: o binómio Liberdade/Igualdade.
Parece-nos que a evolução que houve na visão do ser humano ao longo da história das ideias políticas foi doutrinariamente relevante e crescente, enquanto em relação ao Estado estagnou num ponto perigoso. Vivendo a manutenção da ordem mundial sob o estigma presunçoso da imagem ocidental de interestadualidade, imagem impar de “nações civilizadas” (veja-se o art.º do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça). Alheando-se das diferenças multiculturais que se criam num planeta com uma população que cresce a uma escala enorme, essencialmente fora da esfera tradicional de produção científica.
O Véu da Ignorância.
Parece indiscutível que se possa dizer de forma consensual que os fins da justiça, segurança e bem-estar são dignos de respeito por todos os sujeitos da cena internacional.
Equacionando o papel do Direito no mundo, há que, aplicando às relações internacionais, subtrair este como a forma de manutenção da ordem perante a salvaguarda de princípios naturalmente bons e que merecem ser sempre salvaguardados: o ius cogens.
A única válvula de escape com as diferenças culturais que existem e que apontam problemas de conciliação graves é a da formulação de direitos gerais e comuns a todos, mormente chamados Direitos Humanos. Superiores à religião e à riqueza.
Um novo mundo está a surgir com países emergentes, até então dormentes, que não têm o mesmo livro de condutas que nós! Não chegámos ao Oriente como ao resto dos povos que culturalmente colonizamos do resto no Mundo. O relativismo axiológico cresce exponencialmente.
Neste momento em que a população mundial cresce, e com ela a fome, em que a soberania de estado é cada vez mais ténue e os processos de globalização aumentam, qual será a postura que o Direito deve ter?
Tal como todos os anteriores, as nossas ideias são meramente isso, ideias. Via de regra, fracas, inacabadas e soltas. Com vícios de linguagem e erros de pensamento. Incapacidades do autor, manias e ignorância. Mas, essenciais para o impulso de novas ideias… Progressivamente mais coerentes.
O caminho que apontamos é o de considerar a soberania como a apresentação de uma dignidade própria de cada Estado, quase como a consagração analógica dos direitos de personalidade que cada um de nós – pessoas – tem.
Veja-se que existe em curso um progressivo processo de rarificação da soberania nacional, pela integração dos Estados em comunidades, associações super e supranacionais, organizações internacionais… Nomeadamente as Nações Unidas! Os princípios desta organização são os mesmos que levaram diversos autores a conceptualizar os diversos projectos de paz perpétua – Sully, Kant, Candenhove-kalergi, Saint-Pierre – pela manutenção da paz através da cooperação e do comércio.
Já Adam Smith propunha um conceito mecanicista de Liberdade e Bentham associava ao comércio uma forma de manutenção da Paz.
= Jus + Naturalismo
“Ser pessoa é respeitar os demais como pessoas”, disse Hegel.
Na sua base está o direito natural, pai do jus cogens e avô dos direitos do homem.
Destarte, o contributo de vários religiosos é fundamental. S. Paulo previa um universalismo pela unidade do “género humano”, quando metodologicamente reflecte acerca das condições da convivência da família das nações, unidas por vínculos de valores comuns. Na sua esteira, S. Agostinho e S. Tomás fundamentam a sociedade internacional sem suprimir a diversidade cultural.
Séculos depois discutiu-se acerca da alma dos indígenas e, no direito internacional, nascem princípios de igualdade, segundo a imagem de Deus – Bartolomeu de las Casas, Suarez, Vitória, Menchaga e de Soto.
É o homem cartesiano que nos poderá levar hoje a um caminho estável, 7 mil milhões de pessoas diferentes que não podem isolar-se… Como dizia Nietzsche, o homem para viver isolado é a negação do próprio homem, Deus ou animal. E vivendo em comunhão o homem não consegue ser anárquico. Tem por algum meio de controlar os conflitos.
O exemplo máximo dos conflitos humanos é a guerra. No entanto, passadas duas de expansão global, e um período de relativa estabilidade, decresce a importância prática que se dá à guerra, típica da Guerra Fria, mas tem de sobreviver a importância fenomenológica que tem de se atribuir à prevenção.
Por todos, passemos um momento a reflectir a crise económica que nos parece atingir e por em causa.  
Em menor escala somam-se mais problemas graves: diversas crises ecológicas, tragédias climatéricas, problemas políticos nacionais que influenciam crises internacionais, questões políticas, económicas e financeiras a nível transnacional.
É por de mais evidente que o xadrez actual já não colhe o mesmo mapa geopolítico clássico. É necessária uma alternativa que tente aliar todos os factores de manutenção do conjunto dos Estados e com respeito por aquele repetido e inesgotável da dignidade da pessoa humana.
Partimos de uma ficção de que o estado é um ser munido de personalidade, quase o conjunto de vontades em Hobbes, que tem um sentido pragmático no seu estar. Criando uma postura extra-fronteiras. E normalmente quanto mais velho mais coerente no que transmite.
A Europa é a mãe das relações internacionais! E, mesmo em decadência, continua a ter para mostrar ao mundo um conjunto essencial de pensamento doutrinário condensado. Por isso podemos dizer, ao lado do banquinho que serve de pelouro como uma qualquer banal pessoa, que não podemos cair em sistemas degenerados: o socialismo nas suas várias vestes, o capitalismo, a autarcia e o colonialismo estão falidos, alguns mesmo moribundos ou mortos.
Temos que negar o egoísmo dos Estados e por isso limitar a soberania. E que a mudança interna não caía no erro da luta de classes ou nos abismos sociais regionais, nacionais e internacionais. Só pela cooperação entre todos os países do mundo, da existência de mercados livres com mercados justos, pelo respeito pelo trabalho e pela propriedade privada e liberdade de oportunidades podemos caminhar num sentido comum.
Termos como submundo, terceiro mundo e países não civilizados são termos são um sinal preocupante das assimetrias da razão. Não nos esqueçamos que o próprio capital tem como justificação de existência em cada cidadão do mundo pelo valor do trabalho e pela valorização da afectação da riqueza de cada um em prol da sociedade.  
Aquilo que são caprichos extraordinários podem ser entendidos em parte como um crime contra a humanidade, a propriedade privada não tem valor se com o seu ganho apenas houver uma deificação pessoal.
As Nações Unidas, símbolo máximo do consenso mundial, do amor à paz deve chamar a si o futuro capaz para a humanidade. É utópico dizer-se que num futuro próximo se vai chegar a uma sociedade única internacional, além de parecer um império mundial de invasão extraterrestre... Mas, a regionalização internacional através de associações de estados soberanos que deleguem parte da sua soberania ou a criação de confederações pode ser um caminho a seguir. Transformando o concerto europeu numa balança mundial.  

U.S. Army Signal Corps, Associated Press


Nagasaki, 9 de Agosto de 1945

A Cultura e o Homem I - O que é a Cultura?


A Cultura e o Homem I
O que é a Cultura?

"La Cultura(...) es el conjunto de los productos, actos y procesos especificamente humanos." - Francisco Romero

Definir é preocupação dominante da mente do homem que, acima do prazer proporcionado pelo exercício duma dialéctica gratuita, procura atingir a verdade, seja ela de que espécie for. Não, porém, por exemplo, à maneira de Pilatos, em cuja boca a interrogação sobre a mesma verdade, concretizada na presença de Cristo a caminho do martírio, atinge mais a expressão cínica dum tédio enfastiado do que a ânsia sôfrega de uma resposta. Definir é uma forma de conhecimento que pretende ascender dos aspectos parcelares da realidade ao segredo de uma fórmula que, agora em operação inversa da primeira que a razão construiu, procura identificar todas as facetas congéneres da mesma realidade. E, todavia, afectando de todos os perigos inerentes ao conhecimento abstracto, a definição oferece tantas vezes aquele inconveniente de procurar encerrar a imensidade do oceano numa cova aberta por uma concha na praia. Não falemos dos aspectos fugidios e nebulosos da realidade contingente, que levaram certas filosofias, como a de Kant, à negação do seu conhecimento exacto: à impossibilidade de a abranger no seu todo, acrescentava-se a insuficiência dos instrumentos do conhecimento, representada, quer pela deficiência dos orgãos sensoriais, quer pelos próprios factores que deformam a objectividade da razão humana.
Sócrates, sem ignorar os perigos da definição, não se furtou, no entanto, à tarefa de a procurar nos seus diálogos, com os discípulos, como Eutyphron, depurando-a porém, de aspectos contraditórios, para a tomar como norma de conduta, integrada num conceito de existência. Passando ao plano da Cultura ou do Homem - e é óbvio que a Cultura não pode entender-se senão como humanizada, de modo que os dois termos se apresentam como factores do mesmo binómio. Uma definição implica natural e necessariamente a ideia de uma finalidade. Tudo o que se define traz inerentes ou expressos os fins visados. Por conseguinte, formular a pergunta: - O que é a Cultura? - envolve ao mesmo tempo outra interrogação: - Quais os fins a que se propõe a Cultura? Paralelamente, qualquer definição sobre o Homem envolve toda uma problemática que abrange, ao mesmo tempo que as origens, também o significado e o destino a que se liga a sua situação no mundo. A questão está em que coincidam ou não todas as posições em que se coloquem os definidores dos dois conceitos, ao ponto de se pôr a dúvida - que eu também perfilho - acerca da possibilidade duma unanimidade de pontos de vista.
Mas voltemos ao problema da Cultura. O objectivo ideal seria definir as coordenadas, dentro das quais deveria assentar um conceito sobre a mesma, de modo que, para além da pluralidade e da divergência de opiniões, reprimindo o espírito de facção e a intenção polémica que anima, na generalidade, as inovações ou as pretensas inovações doutrinárias ou ideológicas, fosse possível admitir uma unanimidade de conclusões sobre a legitimidade dos problemas do homem, frente à sua posição no mundo e aos seus destinos. Nestas circunstâncias, a Cultura, procurando o modo de o homem se realizar plenamente, entender-se-ia, dentro de uma dimensão existencial, como uma vivência, porque dita ou pauta uma norma de acção ou de reacção perante a vida. É uma tomada de consciência, que não se restringe à razão abstractizante e representa antes o homem na sua totalidade, chamemos-lhe, somato-psíquica.
Em relação à Cultura, tenhamos presente, por exemplo, o perfil psicológico de um João da Ega, ao qual assistiu o privilégio de formular o conceito mais original sobre o mundo e os homens, não sei se poderia o mesmo considerar-se como representante de uma cultura verdadeiramente humanizada, certo como é que, segundo o testemunho do autor que lhe deu o ser, lhe faltava aquele outro requisito de transformar o pensamento em acção. Nós diríamos: de objectivar o pensamento numa forma de conduta, para que se realizassem plenamente, na medida em que a cultura ultrapassa as fronteiras dum mero diletantismo. Perguntaríamos se está no domínio das tais abstracções a oposição tecida entre Cultura e Civilização. Esta última, na concepção de certos pensadores, pode revestir-se de um significado mais ou menos pejorativo, a indicar um progresso meramente material e mecânico - "uma cultura velha e com esclerose" - numa expressão de Maritain. Este autor atribui à Cultura um sentido racional e moral, que a distingue do significado civil e político que atribui à Civilização. E o sinal da aproximação, para não dizer de quase identidade, está na afirmação do filósofo de que uma Civilização só merece tal nome quando for uma cultura.
Segundo Ortega y Gasset, o mundo em que o intelectual se encontra parece-lhe estar aí precisamente para o pôr na dúvida, enquanto ao outro( o homem comum) só interessa conhecer "para manejar as coisas, usá-las, aproveitá-las em seu benefício o melhor que possa". O insigne pensador espanhol especifica o caso do intelectual, de modo que tal destrinça, em relação ao conceito de Cultura, a vem colocar num plano estritamente filosófico, menosprezando outros sectores em que o espírito se projecta. Não é a arte uma expressão cultural? É igualmente verdade que o artista não aceita o mundo tal como ele é. Alargando deste modo um pouco mais a expressão de Ortega, diríamos que essa não aceitação se não limita a um motivo de dúvida, para se volver igualmente em objecto de captação de essências ou no estabelecimento de outras espécies de relações cuja iniciativa obedece a um impulso criador. Não esqueçamos, porém, que a arte, sendo uma forma de expressão de cultura, não é a Cultura na sua essência, porque nesta, como vivência, se incluem uma vontade, uma intenção e uma direcção.


André M. Feijó
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal