A Cultura e o Homem I
O que é a Cultura?
"La Cultura(...) es el conjunto de los productos, actos
y procesos especificamente humanos." - Francisco
Romero
Definir é
preocupação dominante da mente do homem que, acima do prazer proporcionado pelo
exercício duma dialéctica gratuita, procura atingir a verdade, seja ela de que
espécie for. Não, porém, por exemplo, à maneira de Pilatos, em cuja boca a
interrogação sobre a mesma verdade, concretizada na presença de Cristo a
caminho do martírio, atinge mais a expressão cínica dum tédio enfastiado do que
a ânsia sôfrega de uma resposta. Definir é uma forma de conhecimento que
pretende ascender dos aspectos parcelares da realidade ao segredo de uma
fórmula que, agora em operação inversa da primeira que a razão construiu,
procura identificar todas as facetas congéneres da mesma realidade. E, todavia,
afectando de todos os perigos inerentes ao conhecimento abstracto, a definição
oferece tantas vezes aquele inconveniente de procurar encerrar a imensidade do
oceano numa cova aberta por uma concha na praia. Não falemos dos aspectos
fugidios e nebulosos da realidade contingente, que levaram certas filosofias,
como a de Kant, à negação do seu conhecimento exacto: à impossibilidade de a
abranger no seu todo, acrescentava-se a insuficiência dos instrumentos do conhecimento,
representada, quer pela deficiência dos orgãos sensoriais, quer pelos próprios
factores que deformam a objectividade da razão humana.
Sócrates,
sem ignorar os perigos da definição, não se furtou, no entanto, à tarefa de a
procurar nos seus diálogos, com os discípulos, como Eutyphron, depurando-a
porém, de aspectos contraditórios, para a tomar como norma de conduta,
integrada num conceito de existência. Passando ao plano da Cultura ou do Homem
- e é óbvio que a Cultura não pode entender-se senão como humanizada, de modo
que os dois termos se apresentam como factores do mesmo binómio. Uma definição
implica natural e necessariamente a ideia de uma finalidade. Tudo o que se
define traz inerentes ou expressos os fins visados. Por conseguinte, formular a
pergunta: - O que é a Cultura? - envolve ao mesmo tempo outra interrogação: -
Quais os fins a que se propõe a Cultura? Paralelamente, qualquer definição
sobre o Homem envolve toda uma problemática que abrange, ao mesmo tempo que as
origens, também o significado e o destino a que se liga a sua situação no
mundo. A questão está em que coincidam ou não todas as posições em que se
coloquem os definidores dos dois conceitos, ao ponto de se pôr a dúvida - que
eu também perfilho - acerca da possibilidade duma unanimidade de pontos de
vista.
Mas
voltemos ao problema da Cultura. O objectivo ideal seria definir as
coordenadas, dentro das quais deveria assentar um conceito sobre a mesma, de
modo que, para além da pluralidade e da divergência de opiniões, reprimindo o
espírito de facção e a intenção polémica que anima, na generalidade, as
inovações ou as pretensas inovações doutrinárias ou ideológicas, fosse possível
admitir uma unanimidade de conclusões sobre a legitimidade dos problemas do
homem, frente à sua posição no mundo e aos seus destinos. Nestas
circunstâncias, a Cultura, procurando o modo de o homem se realizar plenamente,
entender-se-ia, dentro de uma dimensão existencial, como uma vivência, porque
dita ou pauta uma norma de acção ou de reacção perante a vida. É uma tomada de
consciência, que não se restringe à razão abstractizante e representa antes o
homem na sua totalidade, chamemos-lhe, somato-psíquica.
Em relação
à Cultura, tenhamos presente, por exemplo, o perfil psicológico de um João da
Ega, ao qual assistiu o privilégio de formular o conceito mais original sobre o
mundo e os homens, não sei se poderia o mesmo considerar-se como representante
de uma cultura verdadeiramente humanizada, certo como é que, segundo o
testemunho do autor que lhe deu o ser, lhe faltava aquele outro requisito de
transformar o pensamento em acção. Nós diríamos: de objectivar o pensamento
numa forma de conduta, para que se realizassem plenamente, na medida em que a
cultura ultrapassa as fronteiras dum mero diletantismo. Perguntaríamos se está
no domínio das tais abstracções a oposição tecida entre Cultura e Civilização.
Esta última, na concepção de certos pensadores, pode revestir-se de um
significado mais ou menos pejorativo, a indicar um progresso meramente material
e mecânico - "uma cultura velha e com esclerose" - numa expressão de
Maritain. Este autor atribui à Cultura um sentido racional e moral, que a
distingue do significado civil e político que atribui à Civilização. E o sinal
da aproximação, para não dizer de quase identidade, está na afirmação do
filósofo de que uma Civilização só merece tal nome quando for uma cultura.
Segundo
Ortega y Gasset, o mundo em que o intelectual se encontra parece-lhe estar aí
precisamente para o pôr na dúvida, enquanto ao outro( o homem comum) só interessa
conhecer "para manejar as coisas, usá-las, aproveitá-las em seu benefício
o melhor que possa". O insigne pensador espanhol especifica o caso do
intelectual, de modo que tal destrinça, em relação ao conceito de Cultura, a
vem colocar num plano estritamente filosófico, menosprezando outros sectores em
que o espírito se projecta. Não é a arte uma expressão cultural? É igualmente
verdade que o artista não aceita o mundo tal como ele é. Alargando deste modo
um pouco mais a expressão de Ortega, diríamos que essa não aceitação se não
limita a um motivo de dúvida, para se volver igualmente em objecto de captação
de essências ou no estabelecimento de outras espécies de relações cuja
iniciativa obedece a um impulso criador. Não esqueçamos, porém, que a arte,
sendo uma forma de expressão de cultura, não é a Cultura na sua essência,
porque nesta, como vivência, se incluem uma vontade, uma intenção e uma
direcção.
André M. Feijó
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal
Sem comentários:
Enviar um comentário