A Cultura e o Homem II


O que é o homem?

"ser homem é tender para um incessante ultrapassar" - Karl Jaspers

Disse no texto anterior que a Cultura e o Homem são dois termos que não podem dissociar-se. Para Franscisco Romero, " La cultura (...) es el conjunto de los productos, actos y procesos especificamente humanos." No que respeita ao Homem, para o mesmo autor este "es padre de sus obras, pero tambien en proporcion notable, hijo dellas." Ainda, segundo ele, " la creácion personal es de rigor en muchos dominios de la cultura, pero rara vez deja de intervenir la présion o el influjo colectivo(...), como si el autor no fuere sino el intérprete de una intuicion o un sentimiento social".
Aqui surge naturalmente a decantada questão das relações entre o homem e o meio. E aqui deparamos também com um influxo mútuo. Uma forte individualidade pode ditar uma revolução no meio e as revoluções, sejam de que natureza forem, são normalmente expressões generalizadas de inspirações individuais, que se combinam com outros factores integrados num conjunto de processos históricos evolutivos. Uma forte individualidade pode ditar uma revolução no meio, portanto.
Encarando o Homem em relação à Cultura, poderíamos afirmar que uma problemática individual é humana em dois sentidos: em primeiro lugar, na medida em se não disseca nem formaliza num plano meramente abstracto; por outro lado, é também humana, porque se constitui em cristalização de um sentimento ou impulso de um grupo. Não devemos esquecer que a expressão mais subjectiva de uma posição ou de uma atitude humana é gerada por um conjunto de determinantes que constituem um clima colectivo, muito embora uma boa parte das vezes estas se não encontrem perfeitamente visíveis ou explicitadas. Outras posições haverá que, na formação da mentalidade comum a uma época, a um período ou a uma localidade, se volvem quase à altura de preconceitos.
Ocorreria, a propósito, perguntar que espécie de limitações à expressão humana da Cultura teria imposto, por exemplo, um conceito de poesia barroca. Não foi esta, por seu turno, o produto de um clima espiritual específico de uma época ou de um momento? É de notar que o Clássico teve manifestações díspares, quer em relação aos géneros, se compararmos a virilidade e a contenção de certos prosadores com o vazio da floração cultista ou conceptista da poesia desse tempo. A própria atitude do homem seiscentista, nessa alienação da realidade, não será uma expressão ou mesmo um produto da realidade momentânea em que se forjou a sua armadura psíquica? E, todavia, afirma-se que houve uma desumanização. Porquê? Talvez porque lhe faltou uma vivência. Há ou parece haver uma desvinculação do homem, em relação às suas origens.
Retomando o que se disse, a a propósito da vinculação do homem ao meio, a efectividade desta só poderá entender-se no seu valor histórico e esse será naturalmente conferido pela posteridade. Certo é que os expoentes mais elevados da Cultura são representados pelas formas mais individualizadas da assimilação ao meio.
Mas o que é o Homem? É a interrogação que repetimos e é formulada por tantos pensadores, implícita e explicitamente. Para Ortega y Gasset, o homem não tem ser porque se caracteriza por um simples devir. O que parece significar que, se está em perpétua evolução, defini-lo corresponde a juntar abstractamente vários momentos, de modo que elaborar um plano de síntese sobre o mesmo homem na busca da desejada unidade, corresponderia a observar do alto esta trajectória do homem através da História. Síntese essa que estaria em contraposição com as doutrinas existencialistas como, por exemplo, as de Sartre ou de Camus, que opõem à abstracção o homem concreto,livre, independente de determinantes metafísicas, tomado como medida e limite de si próprio, sofrendo ao mesmo tempo o drama, a angústia, o desespero, ou a náusea, no sentido sartriano, estados estes que se filiam no sentimento do absurdo em que se resume a sua existência. O cartesiano penso, logo existo é negado por Kierkegaard, quando este afirma paradoxalmente: Eu penso, portanto não existo. Para este último nada mais há do que existir, de modo que a verdade é a própria existência. Na posição de Descartes, a existência surge como consequência lógica do pensamento; na do filósofo dinamarquês, constitui uma razão de ser em si. O aparente paradoxo de Kieregaard parece-me que poderia sofrer a seguinte explicação: o não existir é uma consequência natural do eu penso, na medida em que este anula o existir, aceitando, como atrás se disse, que a existência é inefável e, por conseguinte, refractária às surtidas da razão abstracta. Mas é o existir que tem realidade por si próprio, anulando, consequentemente, a verdade do cogito. Kierkegaard seria talvez menos paradoxal, se afirmasse: eu não penso porque não existo.
Posto isto, poderíamos perguntar se toda a problemática humana não se resumirá, afinal, em tomar o próprio Homem como origem e fulcro de todas as preocupações. A celebérrima frase de terêncio - homo sum, humani nihil a me alienum puto - é de flagrante actualidade, na medida em que não é possível conceber o Homem preocupado com os problemas de uma comunidade que não seja ele próprio. De modo que a citada frase do comediógrafo/pensador romano ficará como denominador comum desde a interrogação metafísica a respeito de si mesmo, até à atitude de humanitarismo ou de solidariedade em face do sofrimento dos seus semelhantes.
Em jeito de conclusão, dir-se-ia que até nas suas expressões pessimistas se exalta a importância do Homem. De todo o modo, o que lhe custa mais a suportar é a indiferença em relação a si próprio. Só esta constituiria um valor especificamente negativo. Diríamos, porém, que essa preocupação antropocêntrica, se encontra esbatida na sua arrogância ou pretensão através da cadeia de reacções emocionais, que verdadeiramente a humanizam na angústia, na interrogação metafísica, na dor cósmica, no sofrimento e nas suas atitudes mais extremas da náusea ou do desespero, que se volvem em estigmas da expiação com que ele paga a ousadia de se colocar no centro do mesmo universo, tudo isto a reduzi-lo paradoxalmente à escala da sua ínfima importância perante o todo que ele procura abarcar. De qualquer modo, ou atendo-se aos seus problemas vitais ou assumindo outras preocupações, quer estas revistam as roupagens da mitologia, quer se ergam às proporções de interrogações metafísicas, quer humilhando-se, quer exaltando-se ou hipertrofiando-se na sua importância, é o Homem que continua a salientar-se como ponto de irradiação. E o que possa representar uma anulação do fluir desse complexo emocional trazido pela dor ou pela angústia, como seja o sublimar-se noutros estados superiores, significa ainda uma ascensão dele próprio em relação a si mesmo.

André M. Feijó,
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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