Da imergência intemporal d’O Labirinto da Saudade, de Eduardo Lourenço


“Em princípio, todo o português que sabe ler e escrever se acha apto para tudo, e o que é mais espantoso é que ninguém se espante com isso.”


Terminei há poucos dias a re-re-leitura de uma obra imprescindível na compreensão do que nós somos e do que não somos. Em bom rigor, O Labirinto da Saudade é percebido como um discurso identitário. Na verdade, em todos os nove textos ensaísticos se vislumbra esse contexto de problematização das questões da identidade. O primeiro dos ensaios, e diga-se que um dos mais interessantes, entitula-se "Psicanálise Mítica do Destino Português", tendo sido dado à estampa na Revista Raiz & Utopia, no mesmo ano de publicação da obra, em 1978. Foi, de resto, o título desse ensaio pensado pelo autor para a obra, todavia Eduardo Lourenço, à semelhança do mexicano Octávio Paz - autor de O Labirinto da Solidão -, decidiu-se por O Labirinto da Saudade, um labirinto, portanto, mais português, por assim dizer: a saudade. Tema que, no entanto, não é tratado na obra como, por exemplo, o é em A Arte de Ser Português, de Teixeira de Pascoaes.
Surge a obra em 1978, quatro anos depois da queda do Império, assim como do Estado Novo; momento adequado para a publicar, segundo Lourenço, e com a intenção de:

- apelar à presença portuguesa na própria realidade, como nos diz o autor em “Repensar Portugal”;

- “repensar (…) a totalidade da (…) aventura histórica [portuguesa], não apenas em função das imagens e contra-imagens mais actuantes da (…) herança cultural [portuguesa] (…) sobretudo de origem estético-literária”;

- questionar “as várias versões dos discursos sobre Portugal”, entre as quais a, na altura ainda recente, “descolonização exemplar”, ou a produzida pelo salazarismo, “uma ideologia em torno da portugalidade e da expansão ultramarina, da família e da religião católica”.


Diz Eduardo Lourenço numa entrevista: “É de crer que por deficiente tradução dos meus pontos de vista, O Labirinto da Saudade se transformou num texto-boomerang como algumas das reacções à obra, na altura em que saiu, o mostraram. O questionamento da identidade portuguesa não fazia parte do meu propósito”. Portanto um certo modelo de tensão essencial entre a visão consciente entre a raiz dos traços da portugalidade e a sua assunção de messiânico destino ou de hiperidentidade. “Quando muito, as versões dos vários discursos sobre Portugal que tinham, em comum, não só serem de carácter ontológico como transcendente ou, pelo menos, destinado a reforçar uma leitura transcendente do destino português”, conclui.
A leitura, portanto, de O Labirinto da Saudade como um discurso identitário é então vista pelo autor como contrária à sua intenção, que era, quer na ordem hermenêutica, quer na ordem ideológica e política, a de problematizar e, se possível, substituir os mais conhecidos discursos identitários que têm Portugal como objecto, por um outro que os explicasse sem ter a pretensão, por sua vez, de ser ‘a verdade’ sobre o que nós somos ou não somos. Sobre o porquê da leitura da obra como discurso identitário não nos cabe discutir aqui.
Cumpre apenas dizer que O Labirinto da Saudade é daquelas obras de leitura impreterível para qualquer português. Alexandre Herculano e Almeida Garrett, escritores representativos do Romantismo em Portugal; Eça de Queirós, Antero de Quental, Teófilo Braga e Oliveira Martins, todos eles setentistas e assinantes do programa das conferências democráticas do Casino; Fernando Pessoa e a moderna geração de Orpheu, “os novos” que desejaram “ser não apenas invenção e recriação de uma nova sensibilidade e visão da realidade (…),mas igualmente uma metamorfose total da imagem, ser e destino de Portugal” : todos estes escritores, nomes sonantes do panorama literário e cultural em Portugal, são referência em O Labirinto da Saudade, por pretenderem, em certa medida e no contexto da época, transformar e lutar contra imagens (reais) de um país (sonhado), uns desejando recriá-lo à imagem de nações europeias fortes, outros anunciando o renascimento do Império com a vinda de um Desejado. Os discursos identitários por eles criados constituem o nosso património cultural, formaram aquilo que chamamos o Ser Português.
Terminamos, reiterando o apelo à leitura desta obra,deste retrato, enfim deste “discurso crítico sobre as imagens que de nós mesmos temos [tínhamos] forjado” como disse o autor. Um livro de emergência, mas de uma emergência intemporal.


Nota: Sobre o autor recomendamos a leitura da sua biografia,no primeiro link abaixo, e do que sobre ele diz José Saramago, no segundo link:

http://www.wook.pt/authors/detail/id/13931

http://caderno.josesaramago.org/2008/10/13/eduardo-lourenco/


André M. Feijó
FDUL

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