Passear pela Guerra Justa de S. Paulo a Puffendorf


Aqui vai... Resumir, muito sucintamente e sem preocupação de interligação directa, o pensamento jurídico associado à legitimidade do poder, às teorias da guerra justa e da desobediência civil.
Esta teorização, parte do pensamento cristão com o seu universalismo e ponderação metódica sobre as condições de convivência, que desde S. Paulo vinha reflectindo uma teoria de unidade do género humano, uma família de nações unidas por vínculos de valores comuns - o antigo testamento dizia-nos  que os povos mesmo que não alcançassem a lei divina revelada tinham sempre hábitos próprios que deviam respeitar.
Santo Agostinho, fundamentando a sociedade internacional sem suprimir a diversidade cultural, dizia que a guerra justa “é aquela que visa restabelecer a justiça violada e que é limitada nos seus efeitos pela moral cristã e pelo direito”.
Na sua esteira, nomes como Santo Isidoro de Sevilha, Graciano, S. Raimundo de Peñaford desenvolvem a teoria da guerra justa - culminando em Aquino a noção da guerra como um tema teleológico-moral.
Formulam-se questões: qual é a autoridade competente para declarar a guerra? Os seus requisitos são perceptíveis aos infiéis? (São Raimundo) Cujo a resposta varia segundo as teoria hierocráticas / antihierocráticas. Nomeadamente, quanto aos infiéis varia porquanto a personalidade jurídica dos infiéis podia ser confirmada pela impossibilidade de discriminação ou não se lhe atribuísse personalidade jurídica.
No séc. XIV as correntes sobre o ius gentium e a humana societas vão ser tratadas no âmbito do conflito entre o Império e o Papado, enquanto teóricos regalistas, voluntaristas e nominalistas vêm impor o primado da vontade individual. O papel de Marsílio de Pádua (Defensor Pacis) que vai dominar as teorias da época, substituindo a escolástica pelo humanismo
Bártolo, um comentador, apresenta a tese estatutária com clara supremacia do império, autónomo do papado. Reconhece às comunidades o poder de declarar a guerra justa.
A Escola Espanhola surge mais tarde num mundo em expansão e mutação acelerada, numa dualidade crispada entre os teóricos da razão de Estado e do humanismo cristão.
No trilho de Maquiavel, a Razão de Estado encara a Guerra como um fenómeno natural – segundo um critério de conveniência e oportunidade para o poder, em detrimento da justiça e da moral. Enquanto o humanismo cristão defende a primazia da moral, seguindo a paz e a ética política (Erasmo, More, Campanella).
A Escola Espanhola é inovadora e essencialmente filosófica, no sulco da primeira escolástica vê no homem um ser racional e social, enquanto o Estado, tal como o homem, necessita de outros Estados e juntos constituem uma sociedade natural.
Bartolomeu de las Casas defende que os humanos nascem por natureza livre, condena violência; (“nunca razões de civilização ou cultura podem permitir que um povo possa conquistar outro, fazendo-o perder a liberdade”); Francisco Vitoria refere que não é legítimo obrigar a obedecer a Deus, pois a fé não se impõe; deve existir um relacionamento entre todos os povos, independentemente da religião (génese do direito internacional), e mesmo o Padre António Vieira: refere que a maldade dos governantes traduz-se em actos violadores do cristianismo no Estado cristão.

Em Francisco de Vitória a sociedade é um fruto de direito natural - direito comum à humanidade (não pode ser concebido sem uma organização social e política) – que é um conjunto de princípios fundamentais de conduta humana que se desenvolve e positiva através do costume, de pacto ou convenção. Mas, o Direito Internacional, que é formado por estas comunidades, não rege apenas as partes, tendo força obrigatória geral – Direito Internacional Comum.
O Estado como comunidade política perfeita não tem superior na ordem internacional, negando as arbitragens, não existindo limites à sua autonomia nem à sua soberania (rejeita o poder político e a autoridade universal do Papa, rejeitando a teoria teocrática, o papa não é dominus orbi). Aparentemente, é difícil conciliar a ideia de um Direito Internacional Comum e a total soberania internacional do Estado, mas a resposta reside na visão do direito das gentes como direito comum ao género humano, sendo um direito positivo ex pacto et condicto dos homens (fundamentado no direito natural) em que substitui o conceito de cristandade por “orbe” – substituindo uma visão teológica por uma racionalista.
A guerra e os meios para a humanizar (ius ad bellum/ius bellum) são invariavelmente tratados sobre as mesma postura: guerra como um mal necessário para reprimir a injustiça entre povos e assegurar a paz totius orbis.
Pergunta-se em De iure belli: é lícito aos cristãos fazerem a guerra? Em quem reside a autoridade para fazer a guerra?  Qual  a razão da guerra justa? O que é permitido na guerra?
Cristo não proíbe a guerra desde que seja justa (Aquino e Agostinho), pois aquele que tem uma causa justa, que usa a força em sua defesa e para reposição da justiça, segundos princípios de direito e para reposição da paz não faz o mal, mas sim o bem.
Só o príncipe pode declarar a guerra: não funcionava como uma prerrogativa do Estado, mas um serviço à comunidade internacional: o recurso à guerra é lícito sempre que  o dano causado fosse inferior ao que se fosse repor.
Francisco Suarez radica a sua perspectiva na distinção dos fundamentos jusnaturalistas dos positivistas do direito internacional: normas de direito natural são absolutas e invariáveis; o direito natural positivo, racional e natural, surge das convenções e costumes, que obrigam por decorrerem do consenso geral.
Nele ressurge a convicção numa solidariedade da humanidade: “o género humano embora dividido em povos e Estados diversos conserva no entanto uma certa unidade, não apenas específica, mas quase política e moral”.
Não é possível o isolamento das comunidades políticas, pois nenhuma é auto-suficiente, necessitam de relações entre elas -  garantindo as maiores utilidades. Têm que ser regidas pelo direito internacional positivo para alcançarem o “bem comum da humanidade”, nas palavras de Verdross.
Neste pensador a teoria da guerra restringe o conceito de bellum justum, na submissão da guerra ao direito das gentes (Domingos de Soto, Vasquez de Menchaga) – a guerra justa é a que visa punir a violação de direitos, assim, é obrigatório fazê-la. Há em Suarez uma perspectiva que afasta a capacidade de avaliar através dele a Restauração como uma Guerra Justa, pois, reflectindo sobre o conceito de conflitos, diz que só pode ser chamada de guerra o que é exterior e entre dois Estados.
Não cumprindo, da mesma forma, o requisito do recurso a um ente superior, nesta época em crise, antes de se declarar a guerra.
Após a Segunda Escolástica surge Grócio, autor que ultrapassa a lex aeterna, e fundamenta na natureza humana o tema da justiça na guerra. Veja-se que no seu tempo os Estados já eram uma realidade efectiva, segundo o princípio da soberania.
A racionalidade do direito torna-o acessível à mente humana sem necessidade de revelação. A validade e obrigatoriedade são subjacentes à razão das normas, independentes da moral e da fé. O Direito Natural será um produto da razão, e decorre da própria natureza humana  e o direito positivo decorre da vontade humana: a natureza e a vontade concorrem para a formação do direito – na comunidade internacional é a figura ius gentium voluntarium que nasce da communis consensus gentium. Personalizando a essência do Direito, é um continuador de Pico della Mirandolla: o ser humano é o vértice da realidade e portanto não deve estar dependente de nada nem de ninguém. Aqui a liberdade conduz à dignidade da pessoa.

De outro modo, Hobbes, contemporâneo da questão em análise, vê na formação da comunidade política um pré-estádio, o Estado de natureza, que é um Estado de guerra e de amargura permanente, em que se constata um paradigma de bellum omnium contra omnes. Por todos os homens serem iguais e daí resultar a desconfiança e o egoísmo, há uma luta pelo bem-estar pessoal e auto-conservação.
A sociedade política é fruto de um pacto social voluntário baseado num calculismo.
O Direito Natural liga-se ao instituto de conservação, não sendo mais que a liberdade de cada um em usar o seu poder para preservar a vida. É uma regra de razão que proíbe que cada um pratique actos que possam ser prejudiciais à sua vida.
A paz e a segurança só são possíveis pela transferência para o Estado de certos direitos: o Estado é uma só pessoa que concentra direitos individuais, uma unidade máxima que conserva uma absoluta soberania. Puffendorf, inspira-se directamente nas questão portuguesa e catalã das revoltas da década de 40 do séc. XVII, e desenvolve na sua De Jure Naturae et Gentium a perspectiva de Hobbes, aceita e desenvolve esta teoria, na qual o Estado de naturezaseria de pacifismo. Com uma sociabilidade fundada na convenção em que se formam três pactos que levam ao Estado: (I) põe fim ao Estado de natureza e cria a sociedade para consagrar a segurança e a paz; (II) pacto que estabelece a forma de governo; (III) pacto que estabelece a submissão ao soberano. 

Sem comentários:

Enviar um comentário